domingo, 4 de novembro de 2007

Mensagem Vs Lusíadas

A comparação entre "Os Lusíadas" e a "Mensagem" impõe-se pelo próprio facto de esta ser, a alguns séculos de distância e num tempo de decadência - o novo mito de pátria portuguesa.



Os Lusíadas

Mensagem
 Homens reais com dimensões heróicas mas verosímeis;

 Heróis de carne e osso, bravos mas nunca infaliveís;  Heróis mitificados, desincarnados, carregando dimensões simbólicas

 Brasão  Terra  Nun’Álvares Pereira
 Mar Português  Mar  Infante D. Henrique
 O encoberto  Ar  D. Sebastião

(de uma terra de dimensões conhecidas parte-se à descoberta do mar e constrói-se um império. Depois o império se desfez e o sonhos e o Encoberto são a raiz a esperança de um Quinto Império)
 Herói colectivo: o povo português
 Virtudes e manhas  Heróis individuais exemplares (símbolos)

 D. Sebastião (rei menino) a quem Os Lusíadas são dedicados;
“tenro e novo ramo”
 D. Sebastião mito “loucura sadia”
Sonho, ambição
(repare-se que d. Sebastião é a última figura da história a ser mencionada, como se se quisesse dizer que Portugal mergulhou, depois do seu desaparecimento num longo período de letargia)

 Celebração do passado – história  Glorificação do futuro – símbolos
 Messianismo a mola real de Portugal
 Narrativa comentada da história de Portugal (cf. Jorge Borges de Macedo)
Teoria da história de Portugal  Metafísica do Ser português
 Três mitos basilares:
o Adamastor
o Velho do restelo
o A ilha dos amores  Tudo é mito
“o mito é o nada que é tudo”



 acção  contemplação
 altiva rejeição do real
 império feito e acabado  Portugal indefinido, atemporal
  Saudade profética  saudades do futuro
 Façanhas dos barões assinalados  Matéria dos sonhos
 Temporalidade  Atemporalidade mística
 Síntese pagão e cristão  Síntese total (sincretismo religioso)
 D. Sebastião como enviado de Deus para alargar a Cristandade  Portugal como instrumento de Deus
(os heróis cumprem um destino que os ultrapassa)
 cabeça da Europa  Rosto da Europa que aguarda expectante o que virá









Poetas da ausência
Do que foi ou do que poderá vir a ser
Intervalo multissecular





O projecto da Mensagem é o de superar o carácter obsessivo e nacional d’Os Lusíadas no imaginário mítico-poético nacional. Os Lusíadas conquistaram o título de “evangelho nacional” e foram elevados à categoria de símbolo nacional. A Mensagem logo no seu título aponta para um novo evangelho, num sentido místico, ideia de missão e de vocação universal. O próprio título indicia uma revelação, uma iniciação.
Pessoa previa para breve o aparecimento do “Supra-Camões” que anunciará o “Supra-Portugal de amanhã”, a “busca de uma Índia Nova”, o tal “porto sempre por achar”.
A Mensagem entrelaça-se, através de um complexo processo intertextual, com Os Lusíadas, que por sua vez são já um reflexo intertextual da Eneida e da Odisseia. Estabelece-se portanto um diálogo que perpassa múltiplos tempos históricos. Pessoa transforma-se num arquitecto que edifica uma obra nova, com moderbnidade, mas também com a herança da memória.
Em Camões memória e esperança estão no mesmo plano. Em Pessoa, o objecto da esperança transferiu-se para o sonho, daí a diferente concepção de heroísmo.
Pessoa identifica-se com os heróis da Mensagem ou neles se desdobra num processo lírico-dramático. O amor da pátria converte-se numa atitude metafísica, definivel pela decepção do real, por uma loucura consciente. Revivendo a fé no Quinto Império, Pessoa reinventou um razão de ser, um destino para fugir a um quotidiano
absurdo.
O assunto da Mensagem é a essência de Portugal e a sua missão por cumprir. Portugal é reduzido a um pensamento que descarna e espectraliza as personagens da história nacional.
A Mensagem é o sonho de um império sem fronteiras nem ocaso. A viagem real é metamorfoseada na busca do “porto sempre por achar”.



“A Mensagem comparada com Os Lusíadas é um passo em frente. Enquanto Camões, em Os Lusíadas, conseguiu fazer a síntrese entre o mundo pagão e o mundo cristão, Pessoa na Mensagem conseguiu ir mais longe estabelecendo uma harmonia total, perfeita, entre o mundo pagão, o mundo cristão e o mundo esotérico.” (Cirurgião: 1990,19)

“A Mensagem é algo mais, muito mais, que uma mera viagem temporal e espacial pela mitologia, pré-história e história de Poortugal. É essencialemente uma viagem pelo mundo labirintico dos mistérios e dos enigmas e dos símbolos e dos signos secretos, em demanda da verdade.” (Cirurgião: 1990,155)

Cirurgião, António
1990 O olhar esfíngico da Mensagem de Fernando Pessoa INLC, Ministério da Educação







A Mensagem reparte-se em dois vectores:

 busca ôntica – procura da essência da lusitanidade e definição da nossa idiossincrasia
 inquirição – questionação do mesmo histórico a seguir e a fazer seguir como projecto nacional colectivo

Pessoa é um exemplo desta obsessão nacional – a espera de um Messias.
A história de Portugal não oferece problemas à elaboração de um mito nacional. Ela está cheia de elementos e contém já um grande mito, o sebastianismo. Pessoa distinguiu o seu sebastianismo, apelidando-o de racional. O regresso de D. Sebastião é associado ao aparecimento do Quinto Império. Pessoa abandona os Impérios materias para elaborar impérios espirituais – Grécia, Roma, Cristandade, Europa pós-renascentista e, agora, Portugal. O Quinto Império já estava escrito nas trovas do Bandarra e nas quadras do Nostradamus. O nacionalismo tradicional é superado por um nacionalismo cosmopolita.
Pessoa, criador do fundo e da forma do mito, anuncia-se como um supra Camões. A realidade é activada pelo Mito (força catalizadora).



Sebastianismo

O sebastianismo é um mito nacional de tipo religioso.
«D. Sebastião voltará, diz a lenda, por uma manhã de névoa, no seu cavalo branco...»
O sebastianismo, fundamentalmente, o que é? É um movimento religioso, feito em volta duma figura nacional, no sentido dum mito. No sentido simbólico D. Sebastião é Portugal: Portugal que perdeu a sua grandeza com D. Sebastião, e que só voltará a tê-la com o regresso dele, regresso simbólico ( como, por um mistério espantoso e divino, a própria vida dele fora simbólica ( mas em que não é absurdo confiar. D. Sebastião voltará, diz a lenda, por uma manhã de névoa, no seu cavalo branco, vindo da ilha longínqua onde esteve esperando a hora da volta. A manhã de névoa indica, evidentemente, um renascimento anuviado por elementos de decadência, por restos da Noite onde viveu a nacionalidade.

 D. Sebastião não morreu porque os símbolos não morrem. O desaparecimento físico de D. Sebastião proporciona a libertação da alma portuguesa.

 D. Sebastião aparece cinco vezes explicitamente na Mensagem (uma vez nas Quinas, outra em Mar português e três vezes nos Símbolos).
Aliás, pode mesmo dizer-se que o Brasão e o Mar português são a preparação para a chegada do Encoberto, na sua qualidade de Messias de Portugal.

 D. Sebastião faz uma espécie de elogio da loucura (condenação da matéria e sublimação do espírito)



O três é um número que exprime a ordem intelectual e espiritual (o cosmos no homem). O 3 é a soma do um (céu) e do dois (a Terra). Trata-se da manifestação da divindade, é a manifestação da perfeição, da totalidade.

O sete assume também uma extrema relevância, senão vejamos, sete foram os Castelos que D. Afonso III conquistou aos mouros, sete são os poemas de Os Castelos .
O sete corresponde aos 7 dias da criação, assim como as 7 figuras evocadas são também as fundadoras da nacionalidade (Ulisses fundou lisboa, Viriato uma nação, Conde D. Henrique um Condado, D. Dinis uma cultura, D. João uma dinastia, D. Tareja e D. Filipa fundaram duas dinastias). Pessoa manteve na sua obra a ideia do número sete como número da craiação.

O sete é o número da perfeição dinâmica. É o número de um ciclo completo.
O sete articula-se com o quatro. Os 7 protagonistas de Os Castelos vêm dos 4 cantos do mundo (França, Inglaterra, Ibéria e Grécia). Note-se que cada período lunar tem 7 dias e existem 4 fases que fecham o ciclo. Perpassa a ideia de algo que se completa, de um ciclo que se fecha. O sete é um símbolo de totalidade, de união do feminino com o masculino. Consciente dessa tradição, Pessoa divide o 7 em duas partes – D. João, o primeiro e D. Filipa de Lencastre, ou seja, o animus e a anima, o yin e o yang, o Adão e Eva, o Sol e a Lua.

O cinco está ligado às chagas de Cristo, às Quinas e aos cinco impérios sonhados por Nabucodonosar. Os quatro impérios já havidos foram a Grécia, roma, a Cristandade e a Europa pós-renascentista. Se o 5º império fosse material, Pessoa não teria dúvidas em apontar Inglaterra, mas como o 5º Império é o do ser, da essência, do imaterial, o poeta não tem dúvidas em apontar Portugal.
Se o sete é o número da perfeição, o três da divindade, o cinco é o número da evolução espiritual do homem.
Pessoa escolheu cinco mártires da nação para corresponderem às cinco quinas (D.Duarte, D. Pedro, D. Fernando, D. João e D. Sebastião). O Brasão está dividido em 5 partes, tantas quantas as partes do nosso símbolo heráldico – Campos, Castelos, Quinas, Coroa e Grifo).

N’Os Lusíadas as quinas representam os cinco reis vencidos por D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique.
O doze assume relevância na segunda parte da Mensagem - Mar Português. Doze são os poemas de Mar Português , 12 eram os discípulos de Cristo, 12 os Cavaleiros da Távola Redonda, 12 os meses do ano, 12 os signos do zoodíaco. O número 12 é o número da acção. Nesta parte da Mensagem, Portugal está fundado na vida activa (a posse dos mares).
O oito é o número das pontas da Cruz da Ordem de Cristo, a cruz que as caravelas ostentavam. Oito letras tem Portugal e oito letras tem Mensagem.



ARTIGOS
Sebastianismo

As controvérsias sobre o Sebastianismo de Pessoa deixam sempre no grande público, e também, afinal no que, por oposição, teríamos que chamar «pequeno público» dos entendidos, a vaga impressão de que nesse campo teremos que admitir, sem discutir, as convicções que às vezes parecem de louco ou megalómano, e não são do domínio do racional. Como essa de acreditar que o Encoberto, o Desejado, o que traria para o Império Português a sua nova Idade de Ouro era, nem mais nem menos do que ele, Fernando Pessoa. Mas temos que nos lembrar que a vinda do Encoberto era apenas por ele encarada «no seu alto sentido simbólico» e não literal, como faziam os Sebastianistas tradicionais, de quem toma distância, e que esse Desejado não seria mais do que um «estimulador de almas». E que, mesmo assim, como ouvimos afirmar, apenas podia «compellir cada alma a, de facto, operar a sua própria salvação». Se tudo isto entendermos, sem esquecer que o Quinto Império era afinal «o Império Português, subordinado ao espírito definido pela língua portuguesa», não obedecendo nem «a fórmula política nem ideia religiosa», e que «Portugal, neste caso, quer dizer o Brasil» também perceberemos que o projecto de Pessoa era desmesurado, sim mas louco, não.
Teresa Rita Lopes. Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. Lisboa: Livros Horizonte, 1993, pp. 33-34.


Quinto Império

É evidente que Pessoa não inventou o Sebastianismo, encontrou-o na tradição portuguesa; mas, ao adoptá-lo, aprofundou-o e transfigurou-o. Sobretudo, uniu-o de uma forma pessoal ao outro grande mito tradicional português, o do Quinto Império. A ideia do Quinto Império vem de muito longe na mitologia judaico-cristã. Todos concordam em ver a sua origem no sonho de Nabucodonosor, contado no Livro de Daniel. O rei vê em sonhos uma estátua de dimensões prodigiosas: a cabeça é de ouro, o peito de prata, o ventre de bronze e os pés de barro misturado com ferro. De súbito, uma pedra bate no barro, o que faz com que toda a estátua venha abaixo; e a pedra transforma-se numa alta montanha que cobre a terra inteira. Daniel interpreta assim o sonho: o ouro representa o império da Babilónia, e a prata, o bronze e o barro misturado com o ferro significam os outros três impérios que irão suceder-lhe. Esses quatro impérios serão destruídos. A pedra que se transforma em montanha profetiza a vinda de um Quinto Império universal, que não terá fim. (...)
Para Pessoa, os quatro primeiros impérios já não são os da tradição, mas os quatro grandes momentos da civilização ocidental: a Grécia, a Roma antiga, o Cristianismo, a Europa do Renascimento e das Luzes. Já não se fala da Assíria nem da Pérsia, nem, aliás, do Egipto ou da China: o mundo é europeu. Mas, sobretudo, quando fala do Império vindouro, já não se trata de todo do exercício de um poder temporal, nem sequer espiritual, mas da irradiação do espírito universal, reflectido nas obras dos poetas e dos artistas. Ele condena a força armada, a conquista, a colonização, a evangelização, todas as formas de poder. O Quinto Império será «cultural», ou não será. E se diz, como Vieira, que o Império será português, isso significa que Portugal desempenhará um papel determinante na difusão dessa ideia apolínea e órfica do homem que toda a sua obra proclama. Um português como ele, homem sem qualidades, infinitamente aberto, menos marcado que os outros, tem mais vocação para a universalidade. Não há dúvidas de que acreditou que aquilo a que chama metaforicamente o Quinto Império se realizaria por ele e nele; é o sentido de um texto de 1925, em que afirma que «a segunda vinda» de D. Sebastião já se verificou, cumprindo a profecia do Bandarra, em 1888, data que marca «o início do reino do sol».

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 404-406.

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